Conforme
os anos foram passando comecei a olhar para minha mãe como mulher e não
somente como mãe. O exercício de percebê-la enquanto mulher, de
entender as submissões e opressões, me fez notar meu pai como um homem
para além de meus olhos mágicos, nostálgicos de um passado que minha mãe
e eu criamos juntas, no anseio de viver um sonho.
Precisei
revisitar minha infância e pré-adolescência para entender melhor as
estruturas que me moldaram, e compreendi o tanto que minha mãe se anulou
para atender as demandas do meu pai, largou mão de empregos e amigos
para fazê-lo feliz, e o vi se irritando com as conquistas de minha mãe,
insinuando que estas o diminuíam enquanto homem.
Durante
minha vida inteira, as longas ausências do meu pai se fizeram presentes
e sua voz nos dizendo que precisava ir para outra cidade a trabalho,
pois precisava sempre ganhar mais, assombraram cada corredor de nossa
casa. Assim, vi minha mãe sentir intermináveis saudades e sofrer comigo e
por mim, quando a depressão bipolar tomou conta de mim e ainda assim,
meu pai não voltou correndo para casa. Minha irmã era tão pequena, eu
tão doente e minha mãe tão desolada: aprendemos a viver sozinhas porque não restava outra opção.
Por
mil e uma razões, minha mãe empurrou por mais de duas décadas um
casamento fracassado, permeado por humilhações e supressões de desejos e
sonhos. Por anos culpei a minha própria existência por amarrá-la a esse
casamento, até que pude entender a complexidade das estruturas.
No
processo de ver a realidade como ela é, percebi que peguei fragmentos
de boas memórias e as transformei em momentos grandiosos e triunfantes.
Porém, ao olhar com atenção para diversos períodos, vi o amor de minha
mãe segurando meus braços. Vi em todos os lugares os sorrisos amorosos e
sua luta incansável para tornar minha infância um lugar bonito de
revisitar, e de cultivar laços de afeto com meu pai. Mas seus esforços
se viram inúteis quando, em minha adolescência confusa e cheia de
sangue, recebi de meu pai distância, silêncios e desdém.
Depois de
muito tempo e um processo que retorceu minhas entranhas, consegui
admitir que, embora meu pai não usasse violência física, a verbal e
psicológica estava lá o tempo todo, bem abaixo de nossos narizes.
E então ele me pergunta: Por que você não está ao meu lado?
E
eu só consigo pensar: Como vou lhe oferecer um carinho e afeto que não
me lembro de ter recebido? Sim, o recebi até os sete anos de idade, mas
entende que não foi cultivado?
Afinal, entendi que o relacionamento abusivo estava pairando no ar e fui criada em meio a tudo isso, e reproduzia comportamentos que acreditei serem meus por natureza. Me permiti entrar em um doloroso processo de desconstrução do “eu” e compreender melhor as razões de minha mãe ser como ela é, os transtornos e criação do meu pai. Me foi possível assimilar as razões pelas quais criei um mundo imaginário, fora dessa realidade e cheio de fantasias que é tão intrínseco a mim. Aqui dentro não há gritos. Não existe chantagem emocional. Aqui dentro, no meu mundo, estou só.
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